1, 2, 3: As categorias universais de Peirce

por Isabel Jungk.

Ao longo de sua obra, Peirce elaborou um quadro categorial inovador sem recorrer a concepções filosóficas prévias, lançando os alicerces de uma arquitetura conceitual integrada como base para toda investigação e conhecimento. Seu sonho era elaborar uma teoria abrangente que pudesse ser o alicerce de todos os desenvolvimentos epistemológicos humanos e, para tal empreitada, o primeiro passo seria encontrar conceitos simples, aplicáveis a qualquer objeto (CP 1, p.vii).

Em busca da generalidade máxima para suas concepções, Peirce partiu da observação dos fenômenos, sua Fenomenologia – que ele também denominava Faneroscopia, a fim de diferenciar suas investigações de outras teorias. Analisando tudo aquilo que se apresentava na observação da experiência cotidiana do pensamento, Peirce entendia ‘fenômeno’ no sentido mais amplo possível, como tudo aquilo que se apresenta à percepção e à mente, independentemente de ser um evento externo ou uma ideia, sonho ou abstração. Suas categorias formais, gerais e abstratas, deveriam ser absolutamente universais, no sentido de que fosse possível observá-las em todo e qualquer fenômeno.

Peirce observou que a palavra ‘categoria’ possui substancialmente o mesmo significado em todos os sistemas filosóficos: um elemento geral inerente a fenômenos de diversas naturezas, sendo esse o motivo pelo qual um conjunto de categorias universais não poderia ser numeroso, pois elas representam um substrato comum. Assim, a tarefa da fenomenologia seria delinear um conjunto de categorias, “provar sua eficiência, afastar uma possível redundância, compor as características de cada uma e mostrar as relações entre elas” (1903, CP 5.43).

Os fundamentos das categorias fenomenológicas podem ser encontrados em seu texto seminal Sobre uma nova lista de categorias (1867, CP 1.545-559), no qual Peirce desenvolve esse conjunto de concepções universais demonstrando serem necessárias para a unificação das impressões da experiência na mente. Ele afirma, nesse momento inaugural, que, apesar de não ser totalmente satisfatória do ponto de vista lógico, perspectiva que ele desenvolveria ao longo de sua obra, essa nova lista é um de seus trabalhos de maior força filosófica, resultado de uma década de intensa dedicação.

Embora Peirce tenha chegado a esse resultado muito precocemente, ele não se deixou levar pelo entusiasmo inicial de ver concretizada essa lista de concepções universais que, diferentemente daquelas elaboradas por Aristóteles, Kant e também Hegel, não era apenas um remanejamento de velhas concepções e, por isso, buscou, por todos os meios, encontrar algo que pudesse refutá-la, busca que somente revelou mais evidências em seu favor. Mais tarde, ele lembraria a trajetória percorrida:

Minha lista de categorias difere da de Aristóteles, Kant e Hegel por ser mais ambiciosa do que as deles. Eles apenas se apossaram de concepções disponíveis já trabalhadas, limitando-se à seleção das concepções, desenvolvendo levemente algumas delas, rearranjando-as e, em caso de Hegel, separando uma ou duas que tinham sido confundidas com outras. Mas o que tomei como tarefa foi retornar à experiência, no sentido de qualquer coisa que se força sobre nossas mentes, examinado-a para formar concepções claras de suas classes e elementos radicalmente distintos, sem confiar, de modo algum em qualquer filosofia prévia. Esta foi a tarefa mais difícil na qual me aventurei. Esta lista é afortunadamente bem curta. (PEIRCE, 1902, L 75 apud SANTAELLA, 1992, p. 72-73)  

O desejo de Peirce de chegar a concepções claras e distintas, a partir da análise da experiência que se força sobre a percepção, sem recorrer aos resultados de filosofias anteriores, era mais do que uma ambição: era uma constatação de que as categorias anteriormente propostas sofriam de vícios que impediam que elas fossem concepções dotadas do grau de generalidade necessário à fundação de uma teoria filosófica abrangente, que não se limitasse a este ou aquele campo da experiência.

Peirce chegou à conclusão que toda a diversidade fenomênica era redutível a três modos de ser universais, observáveis em todo e qualquer fenômeno, ainda que em diferentes gradações: o ser da possibilidade qualitativa positiva, o ser do fato atual, e o ser da lei que governará os fatos no futuro (1903, CP 1.23). Esses modos de ser são o fundamento de sua lógica ternária cujas concepções são tão abstratas que podem ser consideradas intangíveis, simples matizes de conceitos (c.1880, CP 1.353). Esses três elementos formais, no seu grau de abstração máxima, devem ser entendidos como mônada, relação diádica e relação triádica, respectivamente:

Terceiridade, no sentido de categoria é o mesmo que mediação. Por essa razão, pura díada é um ato de vontade arbitrária ou força cega; pois se houver alguma razão ou lei governando-a [a díada], ela [a razão ou lei] se constitui em mediação [da díada] entre os dois sujeitos trazendo à tona sua conexão. A díada é um fato individual, já que ela é existencialmente, não possuindo qualquer generalidade. O ser de uma qualidade monádica é uma mera potencialidade, sem existência. Existência é puramente diádica. (c.1894, CP 1.328)

Peirce ensaiou diversos nomes para sua tríade categorial, tais como: qualidade, sabor, qualidades de sentimento, simples qualidades, quales, sentimento ou consciência imediata para a primeira categoria; relação, reação, ocorrências, coisas, objetos de força, relatos, sentido do fato para a segunda categoria; e representação, mediação, significados, mente, concepção ou mente estritamente para a terceira categoria.

            Dessa forma, buscando expressar conceitos sem precedentes, que se constituem em substratos lógico-formais universais, Peirce batizou-os como categorias cenopitagóricas (1902, CP 2.87), em virtude de suas conexões com os números, chamando-as de primeiridade (firstness), secundidade (secondness) e terceiridade (thirdness). Em suma, “por serem tão universais a ponto de se presentificarem em tudo e qualquer coisa, Peirce resolveu esvaziar os termos de qualquer conteúdo material, reduzindo-os à sua natureza puramente lógica. […] Em cada fenômeno particular, a roupagem aparente dessas categorias se modifica, mas o substrato lógico sempre permanece” (SANTAELLA, 2001, p. 15).

            O fundamento para a compreensão das categorias está, portanto, na compreensão do substrato lógico-formal de cada uma delas, substratos esses que se mantêm inalterados, apesar da “roupagem” de que se revestem quando observados na variabilidade material de cada fenômeno específico. Para Peirce, a lista de categorias “é uma tábua de concepções extraída da análise lógica do pensamento, aplicáveis ao ser” (c.1894, CP 1.300). As categorias peirceanas não são, dessa forma, noções estáticas ou terminais; elas são dinâmicas e interdependentes, formais, onipresentes e, portanto, universais. 

            A categoria da primeiridade também foi chamada de presentidade (presentness), bem como de originalidade ou oriência. Primeiridade é o modo de ser daquilo que é tal como ele é, sem referência a qualquer outra coisa. Essa pura qualidade positiva é o primeiro modo de ser, e enquanto tal, está presente em todo e qualquer fenômeno. É o ser da possibilidade qualitativa positiva, é mera potencialidade, e, portanto, originalidade e liberdade.

            Essa qualidade monádica do fenômeno é difícil de ser percebida em si mesma. Para captá-la é preciso suspender o fluxo do pensamento, estar com a consciência aberta, disponível para aquilo que a ela se apresenta sem relação com nada mais. Peirce diz que o modo como o artista vê o mundo é aquele capaz de captar as qualidades do mundo fenomênico (CP 1903, CP 5.41), e afirma que a pura qualidade de sentimento que experienciamos quando estamos com a percepção completamente aberta ao fenômeno é a representante psíquica da primeiridade (1903, CP 5.44).

Vale lembrar que, para Peirce, uma qualidade em si mesma, como possibilidade, nunca é objeto de observação direta; ela é sempre produto de reflexões lógicas sobre as qualidades corporificadas nos existentes do mundo: “Olhando, vemos que uma coisa é azul ou verde, mas a qualidade de ser azul e a qualidade de ser verde não são coisas que possamos ver; são produtos de reflexões lógicas” (1877, CP 5.369).

            Assim como as outras, a categoria da secundidade recebeu diferentes nomes ao longo de sua obra, tais como conflito, obsistência e binariedade. Para Peirce, “Obsistência (sugerindo obviar, objeto, obstinado, obstáculo, insistência, resistência, etc.) é aquilo no que a secundidade difere da primeiridade; ou é aquele elemento que, tomado em conexão com a Originalidade, faz de uma coisa aquilo que uma outra a obriga a ser” (1902, CP 2.89).

            Onde há um fenômeno, há uma qualidade (primeiridade) que não é senão parte desse fenômeno e que, para ganhar existência tem de, necessariamente, incorporar-se, “materializar-se” num singular. É nesta corporificação que se dá a secundidade, já que existência é puramente diádica. A díada é, portanto, um “fato individual, existencial; não tem generalidade” (c.1894, CP 1.328), sendo “a ação mútua de duas coisas sem relação com um terceiro, ou medium, e sem levar em conta qualquer lei da ação” (1903, CP 1.322).

            Como terceiridade, no sentido categorial, é o mesmo que mediação (CP 1.328), ela também foi chamada de transuasão, no sentido de “modificação da primeiridade e da secundidade” (1902, CP 2.89), já que terceiridade é o modo de ser daquilo que coloca em relação recíproca um primeiro e um segundo “numa síntese intelectual” ou “elaboração cognitiva”. (SANTAELLA, 2001, p. 51). Dessa forma, é possível observar que, tal como a primeiridade sempre está contida na secundidade, ambas, primeiridade e secundidade estão sempre presentes na terceiridade.

Assim, primeiridade é o modo de ser daquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a nada mais; secundidade envolve a relação de um primeiro com um segundo, sendo a categoria da facticidade e experiência no tempo e espaço; e terceiridade, por sua vez, coloca um segundo em relação com um terceiro, sendo a categoria da semiose (cf. NÖTH, 1990, p. 4). De fato, a forma mais típica da terceiridade encontra-se na noção do signo, uma relação triádica, na qual a ação do signo ou semiose, que é a ação de ser interpretado em outro signo, realiza-se. Como Peirce defende a ideia de que não há pensamento sem signos (1868, CP 5.283), e isto equivale a dizer que pensamento é representação, a categoria da terceiridade é o modo de ser da mente, do pensamento, enfim, de toda inteligência.

A categoria da terceiridade pode, ainda, ser considerada a categoria do próprio homem, já que em mais de uma passagem, Peirce afirmou que o homem é signo, “pois o homem é o pensamento” e o pensamento é signo (1868, CP 5.314). Vale observar que os conceitos de mente e pensamento em Peirce não são antropocêntricos, não se restringindo ao ser humano. Esses mecanismos independem da ação humana, pois todo signo tem autonomia, isto é, tem agência própria na geração de seus interpretantes.

O conceito de semiose ou ação do signo é fundamental para compreender a lógica entendida como semiótica no edifício filosófico de Peirce. Como todo pensamento se dá em signos, é através do estudo dos mecanismos sígnicos que se pode compreender mais amplamente a percepção, a cognição e o raciocínio humanos.

Referências

JUNGK, Isabel. A semiose da escrita e sua reconfiguração na hipermídia: Uma análise semiótico-sistêmica. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica, PUC/SP, 2011a.

JUNGK, Isabel. Por uma Ontologia Plana: Harman, Simondon, Peirce. Tese de Doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, PUC/SP, 2017.

NÖTH, Winfried. Handbook of Semiotics. Bloomigton: Indiana University Press,1990.

PEIRCE, Charles S. Collected Papers. Vols. 1-6, Hartshorne, Charles; Weiss, Paul (Eds.), 1931. Vols. 7-8, Burks, Arthur W. (Ed), 1958. Cambridge: Harvard University Press.

PEIRCE, Charles S. Writings of Charles S. Peirce, Chronological Edition. Vols. 1-6 e 8. Peirce Edition Project. Blomington: Indiana University Press, 1980-2000.

SANTAELLA, Lucia. A assinatura das coisas: Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. 3ª. Ed. São Paulo: Iluminuras: FAPESP, 2001.

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